segunda-feira, 18 de julho de 2016

Com ou sem Mediação? - a participação social para Alckmin e Haddad



Já falei aqui que há uma crise da representação em boa parte do mundo. As pessoas continuam acreditando na democracia como melhor sistema de governo, mas elas se sentem desacreditadas nos tradicionais formatos de representação política, via partidos políticos e sindicatos, por exemplo. Para superar esse impasse, surgiram no mundo alguns novos movimentos sociais pedindo mais democracia, mais participação social, menos hierarquia na representação política[1]. A ideia é que hoje os cidadãos não se satisfazem mais em participar da vida política de quatro em quatro anos, nas eleições. Eles querem participar mais ativamente das decisões políticas durante os mandatos com um monitoramento mais rígido de seus representantes, participando também do desenho de determinadas políticas.

No caso de São Paulo, tanto o governador Geraldo Alckmin (PSDB) quanto o prefeito Fernando Haddad (PT) parecem não ter dado a devida atenção para essa reivindicação da população. Ambos políticos de partidos tradicionais, eles parecem ver a participação social sob o olhar do século XX.

Pra ilustrar o que estou dizendo, trago dois casos, um de cada partido, que demonstram que ainda há um longo caminho para que os cidadãos entrem na pauta governamental como atores do dia a dia:

Onde pedalo?
Haddad assumiu a prefeitura de São Paulo em 2013. Logo no primeiro mês de mandato, prometeu instalar ciclovias em todos os novos corredores de ônibus que seriam construídos na cidade. Durante a campanha eleitoral de 2012, a promessa era construir 150 km de corredores de ônibus, no entanto, o olhar sobre as ciclovias era secundário. No Programa de Governo lançado durante a campanha, foram feitas apenas citações vagas: "criar uma rede de vias cicláveis"; implementar "um sistema cicloviário composto por uma rede viária conexa e contínua para a circulação segura das bicicletas”. A menção pela construção de 400 km na cidade nos 4 anos de mandato aparece somente no documento com as "diretrizes para a bicicleta no plano de governo", compartilhado com a ONG Ciclocidade.

Em março de 2013, já eleito, Haddad anunciou oficialmente a meta de instalar os 400 km de ciclovias no Plano de Metas de seu governo.

Em um primeiro momento, no início da implantação das ciclovias, a aprovação a elas era alta. Mas, com o passar o tempo e com uma maior disseminação das ciclovias, a aprovação foi caindo.

Mas, afinal, por que 400 km? Por que não 450 ou 350? E por onde passam as ciclovias? Quem decide seus trajetos?

Se o prefeito houvesse pactuado com a sociedade esses trajetos, provavelmente a rejeição às ciclovias poderia ser menor. Mas não foi isso o que ocorreu. Hoje, são mais de 300 km de ciclovias instaladas. Porém, o estudo que desenhou os trajetos é de técnicos da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). A participação social foi muito limitada. Dois cicloativistas chegaram a entrar para o Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT) em meados de 2014, mas pouco opinaram sobre o desenho das rotas. Já a população como um todo foi excluída do processo.

Onde estudo?
No segundo semestre de 2015 o governo Alckmin decidiu fazer uma reestruturação das escolas do ensino público sob gestão do governo estadual. O plano seria implementado em 2016 e implicaria no fechamento de 94 escolas e na reestruturação de outras 754. A ideia do governo era dar preferência às escolas de ciclo único, separando crianças de 6 a 11 anos no ciclo 1, alunos 11 a 14 anos no ciclo 2 e adolescentes de 14 a 17 anos em outro ciclo no Ensino Médio.

A reorganização, segundo o governo, tornaria a gestão das escolas mais fácil. Além disso, estas escolas de ciclo único apresentavam notas 15% acima da média no Idesp (Indicador Estadual de Qualidade do Ensino).

O problema é que estudantes das escolas afetadas não gostaram nem um pouco da ideia[2]. Além de não terem sido ouvidos, eles seriam afastados de lugares com os quais já tinham vínculos. Eles também ficaram com receio de salas mais lotadas e escolas mais distantes, entre inúmeros outros boatos que surgiram.

Como resultado, os estudantes passaram a ocupar mais de 200 escolas a partir de novembro contra a reorganização. Sem opção, Alckmin suspendeu o plano e prometeu mais diálogo.
O que deu errado? Segundo o blog de simpatizantes tucanos mineiros Turma do Chapéu: "O projeto pode ser bem intencionado a princípio, mas tem um problema que o fere de morte: foi criado por técnicos, que não duvido que sejam competentes, trancados dentro de gabinetes".

Outro fator que merece atenção é o modo como os estudantes se organizaram. Baseados em uma premissa autonomista e em cartilhas do coletivo O Mal Educado, rejeitaram as entidades representativas dos estudantes, como a UNE, ou dos professores, como a Apeoesp.

A batalha pela democracia
O que os dois casos relatados acima têm em comum? Ambos foram planos desenhados por técnicos do poder público com pouca ou nenhuma participação social.

Se no governo Alckmin a participação é vista com maus olhos, no governo Haddad ela vista com o olhar da política tradicional. Ou seja, a participação só é viável através de movimentos sociais organizados.

Haddad, aliás, já declarou todo seu estranhamento com esse novo tipo de se fazer política ao falar do Movimento Passe Livre (MPL) na edição de novembro de 2015 da revista Novos Estudos:

"Deparei ali com um movimento que eu desconhecia e de tipo novo na forma. (...) Ali, havia uma tese interessante, mas uma forma de atuação política nova, que não vem de uma tradição da esquerda clássica - pelo menos brasileira. Movimentos radicais como o MST, o MTST, saúde, educação; nenhum dos movimentos radicais clássicos da esquerda brasileira até aquele momento adotava aquela forma de atuação. (...) A forma não mediada de interlocução com um governo que tinha sido eleito com a bandeira da mobilidade não me parece uma coisa progressista. (...) Insisto: a forma na política é tão importante quanto o conteúdo. Se opusermos horizontalidade e verticalidade, de novo, caímos num raciocino binário - não funciona assim. O problema é essa coisa anti-institucional, esse viés antiestatal - e essas não são questões menores."

Esse estranhamento foi muito bem abordado no artigo La Batalla por la Democracia - Los conflictos en torno a las nuevas formas de participación[3], dos cientistas políticos Ernesto Ganuza, Heloise Nez e Ernesto Morales. Os autores mostram como se dá as tensões entre movimentos sociais organizados e não organizados em experiências de orçamento participativo em Porto Alegre, Paris e Córdoba (Espanha).

No entanto, as experiências relatadas mostram também que um tipo de participação não substitui a outra. A representação eleitoral não está sendo substituída por outros modos de participação. A participação via movimentos sociais organizados também não está morrendo em lugares onde está sendo promovida a participação direta.

Outra falácia em relação às novas formas de participação estaria na incompatibilidade entre democracia direta e democracia representativa: “A questão não é acabar com a democracia representativa, mas como aproveitar uma nova maneira de a sociedade se organizar para transformar a democracia”, trecho extraído da entrevista de Pedro Abramovay, da Open Society Foundations, ao Nexo Jornal.

Pra finalizar, deixo um trecho de uma conversa fictícia criada pelo site Strong Towns e traduzido para o português pelo blog Transportação:



·  Engenheiro: Olá, eu sou o engenheiro de tráfego. Eu soube que você tem algumas dúvidas a respeito das obras rodoviárias previstas para o seu bairro.
·  Moradora: Sim. Eu soube que vocês planejam melhorar minha rua. O que isso vai significar para o meu bairro?
·  E: Nós vamos corrigir deficiências de nivelamento e também problemas no alinhamento existente. Nós também vamos aumentar os acostamentos/bermas* com o objetivo de melhorar os níveis de segurança.
·  M: Então vocês vão tornar a rua mais segura?
·  E: Sim, com certeza.
·  M: E como vocês vão tornar a rua mais segura?
·  E: Bem, primeiro vamos corrigir deficiências de nivelamento e também problemas no alinhamento existente.
·  M: O que isto significa?
·  E: Significa que o nivelamento e alinhamento atuais não cumprem os níveis de segurança e então nós vamos corrigir isso.
·  M: Qual são os níveis de segurança?
·  E: Basicamente a rua deve ser plana e reta.
·  M: Então vocês vão tornar a rua plana e reta?
·  E: Sim.
·  M: Como isso melhora os níveis de segurança?
·  E: Vai permitir que o tráfego flua melhor tornando-o mais seguro.
·  M: Eu não entendo.
·  E: Juntamente com corrigir deficiências de nivelamento e alinhamento nós também vamos alargar as vias de tráfego.
·  M: O que isso vai causar?
·  E: Vai melhorar a segurança.
·  M: Como alargar as vias de tráfego melhora a segurança?
·  E: Juntamente com corrigir deficiências de nivelamento e alinhamento, vai permitir que o tráfego flua melhor.
·  M: O que você quer dizer por permitir que o tráfego flua melhor? Como isso melhora a segurança?
·  E: Os carros vão poder passar sem se preocupar em bater em coisas e então vai ser mais seguro e por isso nós também estamos aumentando o acostamento/berma.
·  M: O que você quer dizer por aumentar o acostamento/berma?
·  E: Nós vamos remover obstáculos do acostamento/berma para melhorar os níveis de segurança.
·  M: O que é o acostamento/berma?
·  E: É a área em cada lado da rua que devemos manter livre de obstáculos caso algum carro saia da rua.
·  M: Que tipo de obstáculos?
·  E: Principalmente árvores.
·  M: Então vocês vão retirar as árvores do acostamento/berma para melhorar os níveis de segurança?
·  E: Sim exatamente.
·  M: Qual o tamanho do acostamento/berma?
·  E: O acostamento tem 7 metros em cada lado da rua.
·  M: 7 metros…isto é todo o meu jardim!
·  E: Me desculpe, mas para atender os níveis de segurança todos os obstáculos devem ser removidos do acostamento/berma.
·  M: Você entende que meus filhos brincam no acostamento/berma?
·  E: Eu não recomendaria isso, não seria seguro!
·  M: Mas é seguro hoje. Eu pensei que este projeto serviria para melhorar os níveis de segurança. Como uma rua se torna mais segura se meus filhos não podem brincar nela?
·  E: Melhorando a rua para torná-la mais segura assim permitindo que o tráfego flua melhor.
·  M: Flua melhor… Os carros só vão ir mais rápido, não é verdade?
·  E: Nós vamos colocar um limite de velocidade depois de fazer um estudo de velocidade e determinaremos a velocidade segura para a rua.
·  M: Mas os carros vão devagar hoje, “devagar” é o mais seguro aqui para o meu bairro, onde as crianças brincam no jardim. Como ter uma “pista de corrida” em frente à minha porta melhora os níveis de segurança?
·  E: Vai melhorar os níveis de segurança pois o tráfego fluirá melhor.
·  M: Eu não estou ciente de nenhuma morte ou acidente nesta rua e eu vivo aqui há 30 anos. Você tem conhecimento de alguma morte?
·  E: Não, não tenho.
·  M: Eu nem sequer tenho conhecimento de nenhuma ocorrência de acidentes nesta rua. Você tem conhecimento de algum acidente?
·  E: Não, não tenho.
·  M: Então porque você diz que a rua não é segura hoje em dia?
·  E: A rua não é segura porque não atende aos níveis de segurança.
·  M: Então hoje os carros vão devagar e é seguro mas você quer nivelar a rua, endireitar a rua, alargar a rua e remover todas as árvores, para os carros poderem ir mais rápido e depois colocar um limite de velocidade para então eles irem mais devagar. E você diz que isso é mais seguro?
·  E: Sim. Vai atender os níveis de segurança e por favor entenda que há projeções de elevado crescimento de tráfego para a sua rua.
·  M: O que você quer dizer: projeções de elevado crescimento de tráfego?
·  E: Nós projetamos que muitos carros irão passar por esta rua nos próximos anos.
·  M: Por que muitos carros irão passar por esta rua? Ela é pequena e estreita e de baixa velocidade.
·  E: Por causa disso que devemos melhorá-la, para se enquadrar nos padrões de segurança.
·  M: Isso não vai simplesmente encorajar mais pessoas a usá-la?
·  E: Nós já prevemos isso e vamos adicionar 2 vias de tráfego para comportar os futuros carros.
·  M: Você vão acrescentar mais 2 vias?
·  E: Sim.
·  M: Para carros?
·  E: Sim. 2 vias a mais vão permitir que a rua se enquadre nos níveis de segurança.
·  M: Deixe-me ver se entendi: você projeta um elevado crescimento no tráfego sendo que não há quase nenhum hoje e vai aumentar a rua para comportar este tráfego. Assim você não está simplesmente encorajando mais pessoas a dirigir?
·  E: Não. Nós estamos antecipando o crescimento e precisamos fazer esses melhoramentos para dar conta do crescimento.
·  M: E onde esse crescimento vai ocorrer?
·  E: O novo crescimento ocorrerá na zona livre de impostos.
·  M: E onde é essa zona livre de impostos?
·  : A zona livre de impostos é na periferia da cidade.
·  M: Que tipo de crescimento vai ocorrer na zona livre de impostos na periferia da cidade?
·  E: Há propostas para uma mercearia, um restaurante drive-thru e um posto de combustível.
·  M: OK, Mas eu vou à mercearia aqui do bairro no outro lado da rua e eu como no restaurante subindo o quarteirão e eu não dirijo muito, logo não preciso de outro posto de combustível.
·  E: Sim nós sabemos, por isso nós planejamos uma passagem pedonal aérea para este quarteirão.
·  M: O que é uma passagem pedonal aérea?
·  E: É uma ponte que lhe vai permitir atravessar a rua com segurança.
·  M: Mas eu posso atravessar a rua em segurança agora! Meus filhos podem atravessar a rua com segurança agora! Porque eu irei precisar de uma passagem pedonal aérea?
·  E: Com 4 vias de tráfego você não vai conseguir atravessar a rua sem atrasar o tráfego. E atrasar o tráfego não seria seguro.
·  M: Mas eu não vou conseguir empurrar o meu carrinho de bebê na passagem pedonal aérea toda vez que eu queira atravessar a rua para comprar leite! Como isso me beneficia?
·  E: Você se beneficiará com a arrecadação extra de imposto proveniente do novo crescimento.
·  M: Mas o novo crescimento não é numa zona livre de impostos? Com quanto eles vão contribuir de impostos?
·  E: Nada atualmente, mas em 10 a 15 anos eles vão contribuir muito com impostos.
·  M: Por que nós vamos fazer um investimento que não vai começar a se pagar em 10 a 15 anos? Até lá a mercearia vai virar numa Loja de 1,99/Loja 300 e haverá uma outra zona livre de impostos.
·  E: Se nós não provermos os subsídios e não investirmos no melhoramento das ruas o crescimento não iria acontecer. Sem crescimento a cidade pode morrer.
·  M: Mas se eu não posso atravessar a rua a pé até a mercearia ela irá fechar. Se eu não posso caminhar até ao restaurante ele irá fechar. Ninguém vai querer comprar minha casa com uma autoestrada à porta. Você se importa que o meu bairro está morrendo?
·  E: Sim, é por isso que nós estamos investindo em novo crescimento, é por isso que estamos melhorando a rua.
·  M: Mas afinal quanto vai custar esta obra?
·  E: O custo total do projeto é de 9 milhões de dólares.
·  M: 9 milhões de dólares…nossa cidades está falida, nós não temos dinheiro para manter a iluminação pública à noite, nós despedimos 4 bombeiros e metade da força policial. De onde vamos tirar 9 milhões de dólares?
·  E: 7 milhões de dólares são do governo estadual e federal. Os outros 2 milhões de dólares serão coletados das propriedades beneficiadas pelo projeto.
·  M: O que isso significa: coletados das propriedades beneficiadas pelo projeto?
·  E: Significa que as propriedades que se beneficiam irão pagar uma parcela dos custos do projeto.
·  M: Quem se beneficia do projeto?
·  E: Todo mundo que está nesta rua.
·  M: Calma. Você está dizendo que eu beneficio do projeto e irei pagar uma parte?
·  E: Sim. Você é um dos proprietários beneficiados que terão de contribuir com o projeto.
·  M: Você deve estar de brincadeira! Eu tenho uma rua calma e sossegada hoje em dia. Meus filhos podem brincar no jardim e é seguro. Eu posso caminhar até a mercearia do outro lado da rua e ao restaurante e é seguro! Para tornar mais seguro vocês vão nivelar, alargar e endireitar minha rua e acrescentar mais duas vias de tráfego. Isso é feito por causa das projeções de tráfego porque queremos novo crescimento na zona livre de impostos na periferia da cidade. E enquanto meu bairro degrada-se e a minha casa perde valor você ainda me obriga a pagar uma parte!
·  E: Me desculpe, mas as projeções necessitam de 4 vias de tráfego e nós devemos cumprir os níveis de segurança.
·  M: E você se pergunta porque nosso país está falido! Nós precisamos parar com estes absurdos e começarmos a construir cidades fortes!



[1] Sobre o tema, vale a leitura do artigo (em catalão) La seleció dels líders de partit en les democràcies occidentals, dos cientistas políticos Òscar Barberà e Astrid Barrio, disponível em: bit.ly/29DH9tr.
Basicamente, os autores tentaram mostrar como alguns partidos europeus vêm tentando romper essa crise de imagem através do aumento da participação política dos cidadãos em seus processos internos. Ou seja, ao invés de um grupo de políticos muito restrito eleger o representante do partido nas eleições, por que não abrir primárias para toda a população definir quem será o candidato do partido?
[2] Todo o processo de mobilização dos estudantes é narrada no artigo As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social, de Antonia Malta Campos, Jonas Medeiros, Márcio Moretto Ribeiro. Disponível em: bit.ly/29FqKPe.
[3] O mesmo artigo pode ser lido também em inglês em: bit.ly/2a9QZiL.

Um comentário:

  1. http://ctxt.es/es/20170531/Politica/12960/movimientos-nuevos-partidos-ctxt-activismo-joan-subirats.htm

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