terça-feira, 12 de julho de 2016

Eleições espanholas: onde está a nova política?

Crise da representação, velha política x nova política, novos partidos políticos, afinal, o que há por trás das novas lideranças políticas? Elas são realmente novas? Ou são apenas mais do mesmo?

É difícil encontrar as respostas pra todas essas perguntas, mas acho que vale a pena olhar um pouco para as eleições na Espanha de 2015 e 2016 pra tentar entender melhor o que é esse fenômeno. Ainda sem desfecho, elas estão deixando a política espanhola em um impasse inédito por conta da falta de acordos por coalizões e pelo embate entre os velhos e os novos atores políticos.

Parlamentarismo e eleição proporcional de lista fechada
Antes de falar das eleições em si, é preciso dar algumas explicações sobre o sistema eleitoral espanhol. Lá, diferente do Brasil, funciona o parlamentarismo. Ou seja, o eleitorado vota para o Congreso de los Diputados (similar à Câmara dos Deputados) e são os eleitos para deputados que votam no presidente de governo.

Outra diferença é que lá o sistema eleitoral para escolha dos deputados é o proporcional de lista fechada. Se no Brasil o eleitor vota no candidato (proporcional de lista aberta), na Espanha o eleitor vota no partido. Como o sistema é proporcional, a divisão dos cargos por partido é proporcional aos votos do partido naquela Comunidad Autónoma (similar aos Estados). Se um partido no Brasil consegue 10 cadeiras em um estado, os eleitos são os 10 mais votados do partido. Na Espanha, a ordem da lista é pré-definida pelo partido. Assim, não se sabe de antemão quantos do partido serão eleitos, mas já se sabe antes da eleição quem seriam os escolhidos do partido.

Com esse sistema, de 1982 pra cá, após o fim da ditadura franquista, o PSOE (Partido Socialista Obrero Español) e o PP (Partido Progresista) dominaram completamente o sistema. O PSOE, uma espécie de PT espanhol, governou 13 anos até 1996. O PP, algo mais próximo ao PSDB, governou 8 anos de 1996 até 2004, quando o PSOE voltou ao poder. Desde 2011, é o PP mais uma vez quem está no poder. O que difere bastante do caso brasileiro é que o partido do presidente eleito na Espanha sempre conseguiu maioria do parlamento e não precisou até hoje fazer coalizão para governar.

Agora o cenário está mudando!

Já na eleição de 2015 apareceram dois novos atores relevantes: os partidos Podemos e Ciudadanos (C’s). Na ocasião, o PP foi o partido mais votado (123 deputados - 35% das cadeiras do Congreso de los Diputados). O PSOE foi o segundo mais votado (90 deputados - 25%). Em seguida, vieram o Podemos (69 deputados – 21%) e o Ciudadanos (40 deputados – 11,4%), que mudaram completamente o cenário bipartidarista, provocando impasses que não ocorriam até então.

Nos dois meses seguintes à eleição, houve várias tentativas de negociação para formar uma coalização de governo. Quase todos os quatro partidos se reuniram entre si. Porém, houve acordo apenas entre dois deles: PSOE e Ciudadanos. A coalização destes dois partidos lançou em março a investidura entre os deputados eleitos, porém não conseguiram maioria. Tiveram apenas 131 votos dos 176 necessários para governar. Como resultado, nova eleição foi convocada para junho de 2016.

Para as eleições de junho, o Podemos veio diferente. Em coalização com a Izquierda Unida (IU), o partido apontava na segunda posição, passando o PSOE, segundo pesquisas de opinião. No entanto, não foi isso o que aconteceu. A coalização Unidos Podemos conseguiu eleger os mesmos 71 deputados eleitos (21%) por Podemos e IU separadamente em dezembro de 2015. O Ciudadanos também não foi bem. De 40 foi para 32 deputados (13%). O PSOE foi de 90 para 85 (23%) deputados. Já o PP se saiu como grande vencedor da segunda eleição, com 137 deputados (33%), 6 a mais que em 2015. Já os outros partidos, que tinha 8% das cadeiras, foram para 10%, fragmentando um pouco mais o Congreso de los Diputados.

Cidadania e poder
Já falei aqui  que as democracias do mundo ocidental vivem uma crise da representação[1] - as pessoas continuam acreditando na democracia como melhor sistema de governo, mas elas se sentem desacreditadas no atual formato de representação política, via partidos políticos e sindicatos, dando preferência à entrada de novos atores ao sistema.

Na Espanha, esse processo de entrada de novos atores ganhou impulso primeiramente com a crise econômica de 2008. A taxa de desemprego, que estava abaixo de 9% em 2007, pulou para mais de 13% em 2008, chegando a absurdos a 25% em 2012. A mesma crise levou a uma das maiores manifestações públicas do país, iniciada em 15 de maio de 2011 (Movimiento 15-M). Os indignados tomaram mais de 50 cidades da Espanha pedindo Democracia Real Ya! Os protestos diários terminaram antes do fim de junho de 2011, mas a antipatia aos dois maiores partidos (PP e PSOE) só aumentou.

Houve eleição para deputados já em 2011, mas Podemos e Ciudadanos ainda não tinham estrutura para lançar candidato a nível nacional. No pleito de 2011, o PP se aproveitou do fiasco do PSOE à frente do país durante o pior momento da crise e levou o comando do governo, porém a taxa abstenção (o voto lá não é obrigatório) foi uma das maiores desde a redemocratização, chegando a 31%.

Foi só nas eleições municipais de 2015 que ficou claro como PP e PSOE estavam perdendo força. C’s foi o terceiro mais votado no país, mas não conseguiu eleger prefeito em nenhuma cidade grande. Já o Podemos conseguiu duas façanhas importantes: elegeu em Madri Manuela Carmena, com o apoio do PSOE, e Ada Colau em Barcelona, com apoio do PSOE e dois partidos de esquerda catalães: ERC e CUP. A votação das duas novas prefeitas das maiores cidades espanholas foi emblemática. Carmena era juíza com histórico de defesa dos direitos dos trabalhadores, e Colau uma líder dos movimentos sociais contras as desapropriações.

A nível nacional, os líderes de Podemos (Pablo Iglesias) e Ciudadanos (Albert Rivera) foram ganhando espaço durante o ano de 2015. Iglesias fez um histórico discurso no centro de Madrid em janeiro de 2015, dando impulso à sua candidatura. Já Rivera demorou mais pra aparecer, mas chegou a incomodar especialmente em outubro e novembro, pouco mais de um mês antes da eleição, aparecendo empatado nas pesquisas com PSOE e PP.

No primeiro debate da campanha, promovido pela jornal El País, do Grupo PRISA, Rajoy não foi.  Já no debate promovido pela RTVE, antes da eleição de dezembro de 2015, Rivera e Iglesias não participaram. Como de costume, a RTVE, rede pública de rádio e televisão, realizou seu debate "cara a cara" apenas entre Sanchez (PSOE) e Rajoy (PP). O debate com quatro candidatos foi realizado apenas pelo canal La Sexta, do grupo Atresmedia. Porém, o PP mandou Soraya Sáenz de Santamaría, a vice de Rajoy, com o intuito de diminuir sua exposição ao lado de Podemos e Ciudadanos.

Pra mim, essa guerra de PP e PSOE tentando barrar o avanço de outros partidos é que vem marcando a corrida eleitoral em 2016.

Bipartidarismo x pluripartidarismo
Qual foi a tática de cada um dos quatro principais atores nas eleições espanholas de 2016?
O PP teve uma posição clara: somos os mais votados e por isso merecemos a presidência do governo. Antes da eleição de 2015, o PP tentou de tudo para minimizar o impacto dos avanços das candidaturas de Podemos e Ciudadanos. Nas declarações públicas, evitou ao máximo falar sobre eles. E nunca esteve disposto a negociar de fato uma divisão do poder. Nas eleições de 2016, manteve a estratégia. Desta vez, Rajoy foi ao debate promovido pela RTVE com os outros três candidatos, mas se negou até a atacar Podemos e Ciudadanos. A estratégia foi ignorar.

O PSOE já teve postura diferente, pois foram seriamente ameaçados de perder o posto de principal partido de esquerda para o Podemos. Nas eleições municipais, acabaram se sujeitando a ser coadjuvantes nos mandatos das prefeitas de Madri e Barcelona, ambas do Podemos, e precisavam brecar o avanço do partido de Iglesias. O PSOE usou ainda a questão independentista para se aliar ao Ciudadanos ao invés do Podemos. Me explico: PSOE, PP e Ciudadanos são espanholistas, ou seja, contra qualquer independência da Catalunha, País Basco, Galícia ou Ilhas Canárias. Já o Podemos é a favor da autodeterminação: são contra a independência, mas estão dispostos a realizar um plebiscito na Catalunha sobre a questão. Como o plebiscito na Catalunha era uma posição irrefutável do Podemos, não houve acordo com o PSOE. O Podemos também não queria um governo junto ao C’s.
Nos debates, o PSOE ainda fez questão de marcar posição atacando o Podemos algumas vezes e preservando o Ciudadanos. A ideia era deixar claro que não haveria coligação alguma com Podemos, ainda mais com Iglesias como líder.

Já o Podemos vinha se sentindo fortalecido desde as eleições municipais. Depois das eleições de 2015, não abriram mão de praticamente nada para tentar uma coalização com o PSOE. Marcou posição contra o C’s, refutando qualquer aliança com Rivera. Com os resultados das pesquisas indicando avanço da coalização Unidos Podemos, o partido se sentiu ainda mais seguro para incitar uma coalização única e exclusiva com o PSOE, se possível, com o Iglesias como presidente de governo.

O Ciudadanos de Rivera foi talvez o partido mais perdido em toda corrida eleitoral. Não soube ganhar os votos do PP. Não marcou posição e se dispôs a fazer acordo com qualquer um dos adversários. Atacou em especial o Podemos, muitas vezes mais que o PP de Rajoy.

Se antes o eleitor estava cansado e desmotivado com a disputa PP x PSOE, a corrida eleitoral de 2015 e 2016 mostrou que há espaço para algum entusiasmo em relação às novas candidaturas, mas elas precisam de virtú além fortuna. Afinal, por que alguém que está insatisfeito com o PP irá deixar sua casa e votar no C’s sabendo que o partido irá ceder em todos os pontos para que o PSOE governe? E por que o histórico eleitor do PSOE, insatisfeito com os socialistas, irá deixar sua casa para votar no Podemos?

Hoje, o mais provável é que o PP governe. As pesquisas pós-eleição mostram que até os eleitores do PSOE querem que seu partido se abstenha para que seja eleito o presidente do governo do PP, evitando assim novas eleições. Para esse tipo de acordo, C's e PSOE que o PP abram mão de Rajoy e escolham outra pessoa como chefe de governo.

Qual a novidade?
Há, de fato, algum fator novo nas candidaturas de Iglesias (Podemos) e Rivera (Ciudadanos) ou são apenas novos atores disputando o poder?

No lado do Ciudadanos, que se autointitula de centro, Rivera tem roubado votos especialmente do PP. Por quê? Porque as propostas do Ciudadanos não são nada anticapitalistas. Eles se espelham nos partidos liberais escandinavos como sueco Liberalerna e o dinamarquês Venstre para propor uma Espanha com um estado de bem estar social sim, mas também com uma abertura econômica propícia ao empreendedorismo e aos negócios. E qual a diferença para a “velha direita”? Basicamente, o Ciudadanos não é conservador em relação aos costumes. Rivera já deu declarações que está disposto a enfrentar o debate pela legalização da prostituição, do consumo de drogas, do aborto, entre outros temas polêmicos.

E qual a diferença do Podemos para o PSOE? A resposta é um pouco mais complicada. Enquanto PSOE sempre contou com as duas principais sindicais como base social (Comisiones Obreras – CCOO; Unión General de Trabajadores – GT), Podemos não tem exatamente a mesma origem. Os movimentos sociais que criaram o partido são menos institucionalizados. A própria prefeita de Barcelona, Ada Colau, era uma liderança da Plataforma de Afectados por la Hipoteca, uma organização com demandas muito mais recentes e mais específicas. Iglesias, que vem de família ativista, participou da Juventud Comunista, filiada ao Partido Comunista de España, mas fez carreira mesmo como professor universitário e como apresentador de pequenos programas de debate político na TV, antes de fundar o Podemos. Outros aspectos secundários, mais simbólicos que práticos, marcam algumas diferenças entre os dois partidos. Entre as medidas de perfumaria, vemos que muitos deputados do Podemos não utilizam terno e gravata. É mais comum vê-los de camisa e jeans pelo Congresso.

Há ainda a proposta de se proibir que os que ocupam altos cargos no Poder Executivo sejam proibidos de participar do conselho de administração de empresas estratégicas com participação estatal. No entanto, talvez a principal novidade do Podemos seja o modo como o partido pensa a participação social. Nas prefeituras de Madri e Barcelona os governos criaram portais de participação (Decide Madrid e Decidim Barcelona) em que os cidadãos podem fazer propostas e, se obtiverem o respaldo suficiente, ela pode começar a ser debatida e seguir adiante como política pública. Os portais ainda permitem que os cidadãos avaliem as propostas da própria prefeitura e de movimentos sociais organizados e promovem encontros presenciais de debate de políticas. A ideia é tentar aproximar o cidadão comum da administração municipal, muitas vezes colocando a participação individual em pé de igualdade de movimentos organizados.

Todos esses fatores fazem com que a base de eleitores desses novos partidos também seja diferente. Quem vota no Podemos ou no Ciudadanos geralmente é mais jovem e com mais tempo de estudos!


Nova Sustentabilidade Cidadanista
No Brasil, ainda não temos versões tupiniquins de Podemos e Ciudadanos. Existem alguns novos partidos, como o Partido Novo, Rede Sustentabilidade e Raiz Cidadanista, que prometem crescer em um futuro próximo. No entanto, a implosão do bipartidarismo PT x PSDB ou do peemedebismo[2], que vem dominando as eleições desde 1994, me parece cada vez mais próxima.

É difícil comparar situações de países diferentes em momentos diferentes. Os indignados do 15-M guardam poucas semelhanças com aqueles que foram às ruas no Brasil em junho de 2013. Os cidadãos espanhóis também se autointitulam mais à esquerda e os brasileiros mais à direita. A crise econômica pela qual a Espanha atravessa desde 2008, por sua vez, é completamente distinta dos problemas que o Brasil vem enfrentando atualmente. Aqui, a Lava-Jato é outro fator 100% local que pode mudar a correlação de forças no cenário político.
De todo modo, a ascensão de Podemos e Ciudadanos mostra como a sociedade pode reorganizar suas preferências, alterando o poder de influência de partidos e lideranças.

A nova política, tanto na Espanha quanto no Brasil, também não é assim tão nova, tão diferente. Ainda há lideranças, ainda há representação, ainda há partidos. O que Podemos e Ciudadanos vêm mostrando desde o ano passado é que é possível a entrada de novos atores e também de novos protagonistas na política. Novas práticas, ainda que secundárias muitas vezes, estão se mostrando relevantes o suficiente para convencer os mais jovens a mudar a correlação de forças políticas. Mas não se iludam: pactos e acordos entre partidos ainda serão necessários. Os que detinham o poder também não estão parados. Eles possuem uma estrutura forte o suficiente para frear grandes mudanças ou pelo menos atrasá-las.

Albert Rivera x Pablo Iglesias (jogo de ida)


Pablo Iglesias x Albert Rivera (jogo de volta)

[1] Sobre o tema, mais uma vez recomendo a leitura dos textos do cientista político Russel Dalton (bit.ly/1o9RoHI), em especial o artigo Political Support in Advanced Industrial Democracies, disponível em: bit.ly/1KKhElY.
[2] O filósofo Marcos Nobre chamou a cultura política brasileira herdada dos anos 80 como “pemedebismo” no artigo O Fim da Polarização, disponível em: bit.ly/29VugGS.

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