sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Não é pelos R$ 0,20! É por R$ 0,30?



Em junho de 2013 uma onda de protestos pelo país ganhou as ruas com uma força que não víamos desde pelo menos o começo da redemocratização. No entanto, esse movimento tão amplo e diverso cresceu a partir de uma pauta bem específica: a contrariedade ao aumento das passagens do transporte público (em São Paulo, o aumento seria de R$ 3,00 para R$ 3,20).
Acho relevante ver um pouco o histórico das manifestações de 2013 em São Paulo:

  • 2 de junho: sobe o preço das passagens para ônibus, trens e metrô; 
  • 6 de junho: primeiro ato do Movimento Passe Livre (MPL) contra o aumento. Nele já há mais de 1mil pessoas presentes, cerca de 50 feridas e 15 presas;
  • 7 de junho: segundo ato do MPL com pelo menos o dobro de participantes;
  • 11 de junho: terceiro protesto com mais de 10 mil participantes e 20 presos;
  • 13 de junho: quarto protesto com 130 detidos pela polícia; 
  • 17 de junho: as manifestações ganham dimensão multitudinária!

 O aumento do preço das passagens foi revogado no dia 19 de junho. A presidenta Dilma chegou até a fazer um pronunciamento em rede nacional no dia 21 de junho. Depois, dia 24, reuniu-se com membros do MPL.

O movimento teve inúmeros outros desdobramentos, mas vamos voltar aos dias atuais: os governantes de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, as maiores cidades do país, aproveitaram o fim de ano, em que muitos estão em recesso e com menor capacidade de mobilização, para aumentar os preços das passagens. Resultado: protesto do MPL em São Paulo dia 8 de janeiro de 2015 com 17 detidos, segundo ato no dia 12 de janeiro com mais de 20 feridos e 13 detidos e um terceiro ato no dia 14 de janeiro com ao menos 9 detidos.

Em outro momento espero conseguir discutir a maneira como o transporte público é financiado, mas agora queria me voltar especialmente ao modo como está se dando hoje o conflito entre governos/partidos/polícia com uma nova forma de atuação de movimentos sociais.

Para utilizar da força nos atos descritos acima, a polícia se aproveita de dois parágrafos do art. 5º da Constituição Federal como argumento:
“XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”.

A alegação da polícia é que os manifestantes podem se reunir, desde que informem o percurso da manifestação previamente. Aqui, a polícia sabe bem que o MPL usa como método a definição do trajeto em assembleia realizada durante o ato. Aí começa o embate: a polícia não aceita o trajeto decidido ali, na hora, pelos manifestantes, e começa a repressão[1].

Outro argumento utilizado é que a manifestação não pode talhar o direito de ir e vir de outras pessoas. Ou seja, se a polícia determinar que a manifestação se limite a apenas uma faixa de circulação viária, os manifestantes teriam que se restringir a elas. Mais uma vez, a polícia sabe que é um pedido que tem tudo para não ser acatado. Qualquer manifestação tem como objetivo chamar a atenção da sociedade para sua causa, e se faz isso justamente parando as principais ruas e avenidas da cidade. É assim aqui no Brasil. É assim e sempre foi assim em qualquer lugar no mundo. Daí, não faz o menor sentido marcar um ato para um parque, onde não causaria problemas viários. Se ninguém vir, se ninguém for afetado pela manifestação, não faz sentido sair de casa pra se manifestar.

E isso não tira a “livre locomoção” das pessoas prevista na Constituição? Depende de quem interpreta a lei. Tem quem diga que a livre locomoção não é absoluta[2]. Ela já é limitada e condicionada por alguns fatores. Se não fosse limitada, não se poderia cobrar pedágios em rodovia, por exemplo. Outros podem defender que as manifestações não limitam a livre locomoção de ninguém. Elas limitam apenas a locomoção dos carros. Quem quiser se locomover a pé, por exemplo, não seria afetado por manifestação alguma. Aqui, parte-se do pressuposto que possuir e utilizar o automóvel privado para se locomover não é um direito mas sim um privilégio de quem tem dinheiro para isso. O transporte sim é um direito social (vide recente alteração do art. 6º da Constituição – aqui, pode-se entender que todos devem ter acesso ao transporte público).

Por trás disso tudo está uma grande briga de poder político. Vejam: novos movimentos sociais como o MPL se auto intitulam apartidários (não confundir com antipartidário). Além disso, esses movimentos contam com uma organização horizontal sem representação de poder. Ou seja, não há um presidente ou um interlocutor oficial que responda pelo movimento. Por fim, lideranças naturais que surgiram refutam a política partidária, recusando-se lançar candidatos a cargos eletivos.

É aí que o sistema político consolidado mostra toda sua tendência à paralisia e aversão a demandas que não estão canalizadas nas estruturas formais de poder. Partidos como PT, PC do B e PDT sempre mantiveram suas “bases sociais” de alguma forma estruturada em organizações verticais e com clara hierarquia. Não à toa, essas entidades da sociedade civil organizada é que ocupam hoje os postos de poder em conselho municipais, estaduais e federais. No Conselho Municipal de Transporte e Trânsito (CMTT) da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, quem representa os “Movimentos Sociais” é um membro da Frente de Luta por Moradia (FLM). Na eleição ocorrida em fevereiro de 2014, o MPL sequer apresentou candidato.

Por outro lado, outros partidos surgidos de bases parlamentares já existentes[3] nunca contaram com manifestações populares de apoio a suas ideias e governantes. Seus eleitores, no geral, mantém a concepção de que a delegação de poder de quatro em quatro anos para seus representantes é suficiente. No entanto, no geral, não há manifestações públicas de apoio a algum partido ou a alguma ideia durante o mandato.

Essa estrutura acabou mudando a partir das manifestações de junho 2013.

Começaram a surgir manifestações públicas, nas ruas, a pautas contrárias aos movimentos sociais organizados tradicionais. Em 2015, nos dias 15 março, 12 de abril, 16 de agosto e 13 de dezembro (não por acaso, sempre aos domingos) ocorreram protesto pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, levando milhares de pessoas para as ruas do país.

Em resposta, entidades como CUT, MST e UNE levaram outras milhares de pessoas às ruas nos dias 13 de março, 20 de agosto e 16 de dezembro contra o impeachment e contra a política econômica do governo Dilma.

Nas manifestações contra Dilma, a polícia tem uma relação mais que fraternal com os participantes. Muitos tiram fotos com o aparato policial. Em São Paulo, houve até liberação das catracas do metrô.  Já nas manifestações pró-Dilma, a polícia não é vista como amiga, porém não há qualquer tipo de violência policial. Vale lembrar que, em São Paulo, ambos os tipos de manifestações costumam fechar completamente a Avenida Paulista.

Desta vez, nos atos contra o aumento das passagens, os atores são outros. As táticas são outras.

Movimentos como o MPL são mal vistos tanto por petistas quanto por tucanos. Eles representam ideias de ruptura que escancaram a crise da representação muito debatida na Ciência Política. Ou seja, apesar das pessoas acreditarem na democracia, elas acham que o modo como se dá representação política, via partidos políticos e sindicatos, não dá conta mais das demandas da população. Seguindo a linha do movimento espanhol Democracia Real Ya, seria preciso radicalizar a democracia. Por isso, nem os conselhos criados nas últimas décadas, como o CMTT, seriam o método para superar essa crise.

Esse impasse, pra mim, fica claro nas palavras do prefeito Fernando Haddad à edição de novembro de 2015 da revista Novos Estudos:

"Deparei ali com um movimento que eu desconhecia e de tipo novo na forma. (...) Ali, havia uma tese interessante, mas uma forma de atuação política nova, que não vem de uma tradição da esquerda clássica - pelo menos brasileira. Movimentos radicais como o MST, o MTST, saúde, educação; nenhum dos movimentos radicais clássicos da esquerda brasileira até aquele momento adotava aquela forma de atuação. (...) A forma não mediada de interlocução com um governo que tinha sido eleito com a bandeira da mobilidade não me parece uma coisa progressista. (...) Insisto: a forma na política é tão importante quanto o conteúdo. Se opusermos horizontalidade e verticalidade, de novo, caímos num raciocino binário - não funciona assim. O problema é essa coisa anti-institucional, esse viés antiestatal - e essas não são questões menores."

O modo como as manifestações do MPL são reprimidas são simbólicas e remetem a duas pautas urgentes para o Brasil:
  1. A reforma política: o Congresso e o sistema político vem tentando puxar pra si a responsabilidade de reforma, recusando-se veementemente a deixar a população direcionar as decisões ao barrar plebiscitos e referendos.
  2. A reforma do sistema policial e a desmilitarização da polícia: a forma de atuação tão criticada por organizações internacionais recebem elogios de determinados governos. Foi assim no Paraná. Foi assim em São Paulo.
Nas próximas manifestações, deve-se ver mais violência. O MPL pode voltar a recusar-se a divulgar o trajeto de sua marcha previamente. Mesmo se divulgar, a polícia pode encontrar outras desculpas pra rasgar a Constituição e usar a força de modo desproporcional e irracional.

Hoje, como em 2013, as manifestações deixam de ser pelos R$ 0,20 ou pelos R$ 0,30 e conseguem ganhar volume quando passam a ser por desobediência civil e por ruptura da representação tal como está. A repressão policial contra o MPL não se dá pelo conteúdo de suas reivindicações, mas pela forma. Quando digo forma, não estou dizendo que a polícia é violenta porque o MPL é violento. A repressão existe porque a forma de atuação política do MPL representa uma ruptura inconcebível para polícia, partidos e sindicatos. Tanto PT quanto PSDB só têm a perder com este novo modo de atuação dos movimentos sociais.

 O que vai acontecer daqui pra frente não dá pra saber. Talvez os atos percam força e tudo volte à normalidade. Talvez os atos ganhem adesão, e alguma medida tenha que ser tomada para atender à população ou outros atores consigam canalizar essa insatisfação de outra maneira. De todo modo, enquanto houver crise da representação, haverá movimentos lutando por mais participação e usarão uma pauta pontual, seja o aumento da tarifa do transporte público ou qualquer outra, para mostrar que a forma como se dá a representação política precisa ser revista.

Nessa linha, gosto de lembrar do que li, ainda em 2013, na página do Facebook do professor de literatura da Tulane Univesity, Idelber Avelar: "em quê Maio de 68 mudou a representação política, o jogo institucional da democracia francesa? Em nada. Em quê maio de 68 mudou o mundo? Em TUDO. Mudou a forma como encaramos a política no planeta; mudou a forma como lemos a literatura; mudou até a forma como trepamos”.



P.S.: vale ler esse texto sobre como se dá a guerra dos discursos no Twitter:
"São três tipos de perfis: os convocadores, os narradores e os comentaristas dos atos. Os convocadores são os próprios protagonistas da mobilização, que giram em torno do Movimento Passe Livre (@mpl_sp, mpljoinvile, @tarifazerobh), além de perfis ligados ao coletivo Anonymous (Rio e anonopsbrazil), que andavam sumidos da difusão das lutas urbanas no Brasil. Esses perfis convocadores também cuidaram de narrar os acontecimentos de rua, não deixando muita brecha para um oligopólio narrativos dos veículos de imprensa. Contudo, faz parte dessa perspectiva os perfis do Globo Política, El Pais, Estados de Minas, Jornalistas Livres, Mídia Ninja e Huffington Post, Uol e Exame, por estes terem sido bastante retuitados pelos ativistas. Essa novidade ocorre em função da propagação de flagrantes forjados por policiais ou pelo fato desses veículos estarem noticiando, de dentro das manifestações, ao vivo, o andamento dos atos. Esses veículos acabam equilibrando a disputa na grande narrativa midiática, já que os perfis no Twitter das emissoras de tevê (não apenas) reforçavam muito mais os atos de vandalismo.

Queria destacar uma nuance preocupante, do ponto de vista das ruas: a fragilidade de organização que se encontra a rede do MPL no Twitter. Enquanto há um alto volume de perfis criticando o preço da passagem (mas desconectados com a rede das ruas), os perfis que são atraídos pela rede do MPL se caracterizam mais pelo interesse dramático dos atos (que sempre esquenta a audiência) do que pela pressão sobre a decisão tarifária dos governos."
 




[1]    No terceiro ato contra o aumento da tarifa em 2016 o MPL cedeu e acabou divulgando o trajeto da manifestação. Mesmo sem ter qualquer autoridade para aprovar ou negar o percurso, a polícia acabou aceitando o percurso. Para evitar futuros impasses, seria imprescindível que o Judiciário, representado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desse seu entendimento sobre essa passagem da Constituição.
[3]    Por exemplo, o PSDB surgiu de uma dissidência do PMDB. Não havia um sindicato ou organização social formulando a concepção do partido. Foram políticos que já faziam parte do sistema de representação que fundaram o partido.

3 comentários:

  1. Claudinho, li todo seu blog. Adorei! Ainda estou com esse texto na cabeça e pensando. Achei muito bacana seu apontamento sobre a quebra que esse movimento representa e a ausência de maneiras de dialogar com algo tão novo e peculiar. Obrigada!

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